O legado germânico de 200 anos no Brasil
Em uma tarde ensolarada de sábado, estávamos passeando em Nova Petrópolis. Caminhávamos vagarosamente no entorno da Praça das Flores, quando uma voz surge: "Guten tag! Alles gute?" Olhei e vi que era um simpatico senhor de chapéu, que cuidava dos canteiros de flores do parque. No começo, pensei que não fosse comigo, mas logo percebi ser o único ali por perto, para quem estaria sendo direcionada a saudação em alemão! Boa tarde, tudo bem e com o senhor? Respondi em português.
Na verdade, essa história começa no dia 25 de julho de 1824. Foi quando as primeiras famílias germânicas se instalaram na então Província de São Pedro, no Vale do Rio dos Sinos, fundando a Colônia de São Leopoldo. Antes disso, em 1818, iniciava um verdadeiro êxodo de famílias germânicas para o continente americano. Naquela época, a Alemanha não era uma nação, mas uma frágil união de vários estados independentes que compartilhavam o mesmo idioma e de costumes semelhantes. Eram diversos os motivos para o êxodo, desde a expansão marítima e comercial para o Novo Mundo, frequentes conflitos, doenças, a busca por melhores condições de vida e a promessa de fartura de terras. Mesmo que a grande maioria deles tivesse seguido rumo aos Estados Unidos, os que desembarcaram no Brasil tiveram participação fundamental para o desenvolvimento econômico e cultural de diversas cidades da Região Sul.
A chegada dos primeiros imigrantes foi em meio ao reinado de Dom Pedro I, que havia instituído um programa para estimular o povoamento e desenvolvimento de algumas regiões, até então inexploradas por portugueses e açorianos. O programa prometia passagens pagas, cidadania, lotes de terras, suprimentos e equipamentos para o início de suas atividades na agricultura. As promessas não foram cumpridas, mesmo assim, no dia 18/07/1824, 39 alemães chegaram a Porto Alegre e logo foram conduzidos ao seu destino, através do Rio dos Sinos.
Ao chegarem, encontraram um ambiente de mata virgem, quase inóspito, sob o qual, começariam a ser moldadas as cidades de São Leopoldo e Novo Hamburgo. Mais tarde, a colonização se expandiria para diversas outras regiões do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, à medida que mais imigrantes iam chegando.
Eis que em 1848, o Alemão Henrique Leiden fundou a primeira cervejaria do Brasil, a Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, na cidade do Rio de Janeiro, introduzindo os conhecimentos adquiridos em sua terra natal. Em 1853, a fábrica foi transferida para Petrópolis, RJ, por Henrique Kremer, que a assumiu e mudou seu nome para Bohemia. Desde então, a bebida ganhou diversas marcas, versões e sabores e passou a ser a preferida dos brasileiros.
Na primeira metade do século XX, período que compreendeu as duas grandes guerras mundiais, a imigração mesclou com a entrada de poloneses, austríacos, romenos, ucranianos e russos de fala alemã, que se instalaram no noroeste do Rio Grande do Sul, oeste de Santa Catarina e norte do Paraná. Foi nesta época que surgiu a maioria das empresas fundadas por alemães no Brasil. Nas pequenas cidades do interior, as igrejas luteranas eram quase tão comuns quanto às católicas.
Atualmente, temos inúmeras cidades com identidade germânica, não somente em sua arquitetura, mas nos costumes e até nos dialetos falados por seus moradores, legitimamente teuto-brasileiros. São Leopoldo, conhecida como berço da colonização alemã no Brasil, é uma delas.
Uma das maiores heranças culturais da imigração alemã no Brasil é a tradicional Oktoberfest, que surgiu originalmente em Munique, em 1810, com o nome de Wiesn. Tratava-se, na ocasião, da celebração do casamento do Príncipe Luís com a Princesa Teresa de Saxe, que ocorreu em um parque que seria batizado de Theresienwiese, em homenagem à noiva. O evento foi regado a muita cerveja e virou tradição, não só em Munique, mas também em todos os lugares onde há influência germânica.
Já a Oktoberfest mais famosa do Brasil, a de Blumenau, iniciou em 1984, após uma grave enchente ocorrida na região. O objetivo dela foi recuperar a economia da cidade e foi um sucesso. Tanto que passou a ser a segunda maior do mundo, só perdendo para a de Munique.
Nas cidades de matriz germânica, é comum encontrar charmosas casas em estilo enxaimel, ou Fachwerk, em alemão. O método constutivo utiliza estrutura com vigas de madeira encaixadas e fechamento de paredes com pedras, tijolos ou adobe, materiais encontrados no local. Ferramentaria e utensílios de época são expostos com orgulho em museus e propriedades.
O turismo na região Sul do Brasil está intimamente ligado à identidade europeia que as cidades herdaram. Um dos casos mais emblemáticos é o da belíssima Gramado, na Serra Gaúcha. Além da sua arquitetura e clima, que se assemelham à Europa, a cidade conta com uma atração chamada Alemanha Encantada, localizada em frente ao Lago Negro. O Parque Alemanha Encantada conta até com uma Torre da Rapunzel, que oferece uma linda vista do Lago Negro.
Vizinha de Gramado, Nova Petrópolis é outro ícone da imigração alemã no Rio Grande do Sul. O Parque Aldeia do Imigrante abriga uma vila formada por charmosas casas em estilo enxaimel, além de um riquíssimo acervo formado por documentos, ferramentas, utensílios domésticos e até por cédulas antigas de dinheiro. Em Nova Petrópolis, foi fundada a primeira cooperativa de crédito da América Latina. Até hoje, a cidade ostenta um monumento em homenagem ao Padre Jesuíta Theodor Amstad, que introduziu o conceito no Brasil, em 1902.
Mas não é só o estilo arquitetônico que garante à Nova Petrópolis sua identidade. Nela, é comum ver moradores conversando em alemão em parques, mercados ou em bares. Aliás, o Alemão é um idioma ensinado nas escolas públicas. Outra característica marcante da cidade é a presença de jardins de flores, não só nos parques, mas em frente às casas, nos canteiros centrais das avenidas ou onde houver um espacinho.
Situada no Vale do Taquari, a simpática e hospitaleira Teutônia guarda as heranças de seus colonizadores até em seu nome. Os teutões eram povos da antiguidade que viviam no norte da Europa e contribuíram substancialmente para a formação da Alemanha. Tanto que hoje em dia, o termo teutônico se refere exclusivamente à Alemanha ou aos alemães.
O museu e a Prefeitura de Teutônia, assim como diversas edificações do centro da cidade, ostentam traços da arquitetura germânica.
Algumas cidades do Vale do Caí, como Salvador do Sul e Feliz , também tiveram forte influência germânica em sua formação.
Já em Presidente Lucena, o Restaurante Dheinhaus oferece, além de uma culinária típica, elementos que formam um ambiente bávaro legítimo, com direito até a bandinhas aos domingos!
Outro ícone da cultura germânica, a cidade de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, região localizada no centro do Rio Grande do Sul, é palco da segunda maior Oktoberfest do Brasil, além da Festa das Cucas, evento que homenageia a iguaria gastronômica de origem alemã.
Algumas pequenas cidades gaúchas, como a singela Forquetinha, no Vale do Taquari, possuem um conjunto arquitetônico quase totalmente formado por casas em estilo enxaimel. A Prefeitura e a praça central são um espetáculo a parte.
Lajeado, a maior cidade do Vale do Taquari, também tem suas origens atreladas à imigração alemã. O Parque Histórico de Lajeado é um exemplo perfeito de vilarejo formado por casinhas em estilo enxaimel. Trata-se de uma verdadeira cidade cenográfica, que já foi utilizada inclusive para gravações de filmes de época.
Em Picada Café, o Parque Histórico Jorge Kuhn é um ambiente acolhedor para os visitantes e também recebe eventos folclóricos e feiras de artesanato e produtos coloniais.
A edificação de madeira do início do século XX, chamada carinhosamente de Castelinho Caracol, pelas suas formas e também pela sua proximidade com a Cascata do Caracol, é uma atração à parte, na cidade de Canela. O casarão é um dos pontos turísticos mais tradicionais da região e possui um acervo que conta a história de uma das primeiras residências da cidade, construída pela Família Franzen. Ela foi construída com tábuas de araucária, que permaneceram imersas nas águas do Arroio caracol por 6 meses. Esta era uma técnica de tratamento utilizada na época, para evitar a proliferação de fungos e insetos que consomem e deterioram a madeira.
Hoje, você pode visitar o Castelinho Caracol, passear pelo seu enorme jardim e degustar um ótimo Apfelstrudel com chá.
Um dos roteiros turísticos mais fascinantes do Sul do Brasil foi inspirado em roteiro alemão semelhante. A Rota Romântica, que envolve diversas cidades da Serra Gaúcha e Vale dos Sinos, foi inspirada em uma rota alemã chamada de Romantische Straße. que vai de Würzburg, no centro do país até Füssen, ao sul e apresenta ao longo de seus 366 quilômetros, paisagens encantadoras, castelos medievais, edificações históricas e uma gastronomia fantástica. No caso da Rota Romântica brasileira, não há castelos medievais, mas há edificações históricas no estilo enxaimel, gastronomia típica e paisagens exuberantes, além dos belíssimos túneis verdes formados por plátanos, o que torna o passeio muito interessante!
Outra região com forte influência germânica e forte apelo turístico é o Vale do Itajaí, em Santa Catarina. É onde encontramos a bela Pomerode, famosa por ser a cidade mais alemã do Brasil. Ao lado de Pomerode, Blumenau é palco da maior Oktoberfest fora da Alemanha. Essas e várias outras jóias catarinenses certamente ganharão matérias exclusivas neste site.
Duzentos anos se passaram, um legado permaneceu! A imigração alemã no Brasil atravessou décadas e esteve longe de ser a mais numerosa, mas foi uma das mais representativas, pois praticamente moldou o mapa do Sul do país, fundou cidades, forjou costumes, sempre mantendo sua essência.
Ah, e quanto ao simpático jardineiro do início da matéria, infelizmente não conseguimos conversar em alemão, mas ouvimos e contamos algumas boas histórias sobre a imigração, sobre alguns de nossos antepassados e também sobre a vida. E pensar que tudo iniciou por um singelo e hospitaleiro "Guten tag"!
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Até a próxima!
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